Tania Carvalho

 

 

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Tania Carvalho
Eu, Ghost de mim mesma

 

Eu sou Tania Carvalho, assim, sem acento mesmo. Em três palavras? Obsessiva, inteligente e modesta. Não, modéstia é só uma parte da minha estonteante personalidade. Eu não vou mentir: tenho muito bom humor. E obsessão, inteligência e bom humor juntos, dizem por aí, são imbatíveis. Sou de Niterói, oriunda de um matriarcado nordestino de mulheres fortes com nomes de flores. Quando escolhi um nome, digamos assim, artístico optei pelo das mulheres fortes, Carvalho. Flores com sobrenome de árvore. Sou jornalista e amo o que faço. Já trabalhei em muitos lugares, escrevi muitos livros, fui ghost writer de outros. E hoje me preparo para comemorar meus 60 anos com estilo: vivendo em Paris, a cidade do mundo que mais amo depois do Rio de Janeiro. Podia só viajar, mas inventei um projeto: 100 dias em Paris. Acho que é um bom momento para escrever a minha história. Serei eu mesma a escrevê-la? Ou haverá um ghost por detrás dos teclados?

Acho que começaria com algo transcendental, relevante, o primeiro fato principal da minha vida: aprendi a ler. E daí em diante li tudo o que me apareceu à frente. Na minha família não havia nenhum grande intelectual, mas em casa havia muitos livros, uma coleção com os melhores contos de fada do mundo, chineses e franceses, algumas histórias horríveis, terríveis mesmo, mas que eu adorava. Não que eu tenha tido uma formação clássica, shakespeariana, nada disso. Mas, como eu lia muito, eu escrevia bem, movida pela curiosidade, sempre.

Estudei no Ginásio Laranjeiras, um colégio de bairro, meu pai era absolutamente contra colégio de freiras. Depois, na Escola Técnica Federal cursei meteorologia: já queria trabalhar, sair do ensino médio com um ofício. Minha mãe, secretária nos anos 30, quando se casou, meu pai decretou: “para de trabalhar”. A mim ela sempre disse: “minha filha, trabalhe”. Na adolescência era quase uma intelectual e os óculos ajudavam. Naquele tempo, em 1968, todo mundo queria ser intelectual. Eu lia de tudo. Lia Kafka mesmo entendendo só metade, porque depois havia uma discussão muito profunda. Ler um livro por semana era quase obrigação. Cinema? De preferência tcheco, sem legendas e no Cinema Paissandu. No fundo eu tinha muita necessidade de ser reconhecida pela inteligência: nunca fui bonita, não era daquelas que quando passava todos olhavam. Tinha, então, as minhas armas, numa época em que estas funcionavam. Assim, nunca tive problemas com namorado por causa disso. Eram muito intelectuais.

Não sofri influência marcante de nenhum escritor. Mas também sofri de todos. Cada autor que li contribuiu um pouco: Machado, José de Alencar, que a gente estudou na escola detestando, Drummond, um pouco Bandeira – também lia poesia apesar de não ser muito ligada. Quer saber? O que me carrega é o amor à história. Às vezes o livro pode ser até mal escrito – e nesses casos eu reconheço isso, e se a história for boa vou até o fim, agarro-me a ela com amor. Por isso acho que sempre viajei muito com os autores, mesmo sem ter nenhum predileto. O predileto é sempre o do último livro que li e gostei. Hoje por exemplo, estou “in love” com Fernando Morais porque o último livro que eu li foi Os últimos Soldados da Guerra Fria. Como também já fiquei apaixonada pelo português Miguel de Souza Tavares que escreveu Equador. Gostaria de ter escrito estes dois livros, confesso.

Vou voltar ao trilho…

Tempo de faculdade. Pensei em fazer advocacia, achava lindo tribunal de filme americano – e ainda acho. Depois, pensei em publicidade, tinha uma fantasia sobre a profissão, não era real. Enfim, estava na Escola de Comunicação a o jornalismo optou por mim. Eu era muito nova, andava com uma turma mais velha. Sempre fui metida para caramba. Um dia, Ney Bianchi, um famoso jornalista de esportes, meu colega de bar, me convidou pra trabalhar: “Vai lá numa reunião de pauta”. E eu não fui: morri de medo. No dia seguinte ele me encontrou e me desafiou: “Como é, você não vai lá?”. E aí eu fui. Na reunião, Justino Martins, diretor da Revista Manchete, a mais importante dos anos 70, olhou para minha cara e perguntou: “Quem é essa menina?” E eu fui ficando na Rua do Russel. A primeira matéria que fiz foi com a Astrud Gilberto, o que muito me custou. Duas semanas pra escrever três laudas. Sofri pra encontrar as palavras. Muito. Mas não tenho vergonha alguma do que escrevi. A Manchete foi uma grande escola e a gente escrevia muito, cada matéria tinha, no mínimo, cinco páginas. Quando pegávamos as boas, 20 páginas. Foi o que me deu instrumentos para fazer livros mais tarde. Mas essa é uma história para depois.

Dois anos depois de entrar na Manchete, ganhei o Prêmio Rondon de Jornalismo. Justino continuava me olhando como “uma menina”.

Detalhe curioso: conheci Ney Bianchi em um bar que frequentava. Nunca bebi, porém. Nada. Às vezes, vinho como remédio: um cálice por dia. E faço cara feia. Gosto de ginástica, de musculação, de correr. Há quem diga: não confie em ninguém que não bebe. Acredite, pode confiar em mim. Esqueceu que sou obsessiva? E não beber não é defeito, falta de caráter. Confesso que o meu é nunca ter conseguido emagrecer de fato. Consigo sempre o que quero, mas isso não consegui. A obsessão falha diante de um chocolate. Pronto, falei!

Saí da Manchete para uma gravadora cultural, a Marcus Pereira, e depois fui para a TV Globo, era muito feliz lá. O Departamento de Divulgação era pioneiro, só gente inteligente e bem humorada que trabalhava junto, saía junto, tivemos filhos na mesma época, era uma grande comunidade, tudo muito bom. Mesmo assim, eu sempre tive um plano B, uma coisa importante profissionalmente. Eu nunca fiz uma só coisa. Mesmo na TV Globo, ganhando bem, todo mês fazia uma matéria. Virou, mexeu, e lá estava eu escrevendo para Última Hora, Revista do Rock, Mais, Cláudia, Criativa, Desfile. Nunca fiquei desempregada, nem me faltou trabalho: sempre atenta, fiz networking a minha vida inteira, mesmo quando nem existia essa expressão.

Aos 39 anos quando estava para ser a Diretora do Departamento na Globo, saí. Você é louca, diziam alguns. O diretor me chamou e disse: “não estou te entendendo, 14 anos aqui e…” Então eu expliquei a ele: “Como ser obsessivo que sou, não nasci pra ser chefe. Vou ser uma chefe tão fdp  que vou morrer”, dizia. Sabia que morreria do coração se vivesse uma vida de estresse constante. Por isso, aliás, não poderia ser nunca uma pessoa de publicidade: fujo do estresse o quanto posso. E acho que não seria boa também. Não sei se eu pegaria o jeito, aquela coisa de detectar o clima, o espírito da coisa, muito rapidamente: “isso não é uma Brastemp”, uma frase, o slogan, eu provavelmente ia demorar duas laudas pra passar essa ideia, não sei.  E sei se aguentaria tanta adrenalina, ela me faz muito mal, assim como o cortisol, se eles entram na minha vida acabam comigo.

Em 1991, quando saí da Globo, me terceirizei. Tinha um notebook, um fax, quando ninguém tinha nada disso. Era super up to date, trendy, cool, descolada. Dez anos depois, o mundo foi obrigado a se terceirizar, todos foram mandados embora dos seus lugares e tiveram que se reinventar. Eu já estava no mercado e bem. Acho que antenei uma tendência. Ou foi pura sorte! Alguns anos depois voltei para a Globo, como prestadora de serviços, fazendo resumo de novelas. Transformava 40 páginas em dez linhas. Fiquei dez anos, mas como não tenho medo de largar as coisas, comecei a me chatear, dei um siricotico e saí mais uma vez. Brincam comigo que sou das poucas que largou a Globo. Duas vezes.

E logo apareceu outra coisa. Eu realmente acredito que é preciso estar disponível para coisas boas acontecerem na sua vida. Soou esotérico? Soou eu sei, mas, sabe não sou daquelas que acredita muito. Fui criada católica sim. Religiosa nem um pouco. Mas num momento de aperto, se eu estiver morrendo, com certeza vou pedir para Deus ser legalzinho comigo. Uma vez, estava viajando pela Borgonha, indo para a Suíça, visitei uma igrejinha e ali, naquele momento, eu tinha certeza que já havia vivido alguma coisa lá. E eu não acredito em nada, mas aquela impressão foi muito forte. Foco, Tania. Foco. Volta para o assunto.

Você acha que eu escolhi fazer livro? Que um dia acordei e disse: “agora vou escrever livro”? Não. As coisas foram acontecendo. Um amigo, que escreve sobre gastronomia, me ligou e me convidou pra ir com ele para o Rio Grande do Sul, fazer pesquisa para seu novo livro. Pronto, estava eu de mala pronta. Fui para lá, conheci uma das pessoas mais chatas que cruzou a minha vida, um fotógrafo que trabalhava no projeto. Acabei esse trabalho pensando: “eu nunca mais quero cruzar com essa pessoa”. Dois meses depois ele me ligou: “tem um cara com muito dinheiro em Uberaba, tem um avião dos anos 40 e quer fazer um livro. Você topa fazer uma pesquisa sobre o Correio Aéreo Nacional?”. Eu estava disponível, fui para uma reunião na fazenda (e eu odeio fazenda!) temendo o pior. Foi uma experiência maravilhosa. Apaixonei-me pelo trabalho. Mais tarde o fotógrafo saiu. Ficamos eu, Isio Bacaleinick (piloto e coordenador do projeto) e o novo fotógrafo, Lalo de Almeida. E fizemos um grande livro: Nas Asas do Correio Aéreo, lançado em 2002. Fiquei um mês enveredando pelo país a bordo de um monomotor, refazendo a rota dos pilotos do Correio Aéreo Nacional que nos anos 30 desbravavam o Brasil Central. E dois anos envolvida na produção. Porque eu estava disponível. E rolou uma sincronicidade. Minha mãe havia morrido pouco tempo antes, e achei umas cartas que meu pai havia escrito para ela em 1935, quando ele estava se formando para ser piloto…. do Correio Aéreo Nacional. Veio a revolução comunista, ele foi expulso da aeronáutica. E eu com essas cartas nas mãos: ele contando tudo que estava acontecendo até ser expulso. Dizia que ia embora do Brasil. Minha mãe acabou convencendo-o a ficar, casaram-se e ele não foi para lugar nenhum mesmo. Um ano depois da morte da mamãe veio o livro, exatamente sobre este assunto, e eu usei as cartas. Disponibilidade e sincronicidade.

Depois de aberta uma porta, os livros entraram definitivamente na minha vida. Após anos entrevistando para revistas e jornais quase todos os ídolos da MPB, do teatro e da televisão do nosso tempo: Elis, Tom Jobim, Fernanda Montenegro, Antônio Fagundes, Paulo José, Irene Ravache, entre mais de trezentos, podia usar a minha expertise na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Para a coleção escrevi 16 livros, dentre eles, Tonia Carrero – Movida pela Paixão, finalista do Prêmio Jabuti de 2010. Continuo a escrever, às vezes assinando, às vezes como ghost. Escrevendo sempre.

Como você já pôde perceber, sempre vou ser jornalista. Ter 18 livros publicados não me tornou uma escritora. Eu me incomodo muito quando alguém se refere a mim como “a escritora Tania Carvalho”. Escritor é o Saramago. Eu sou jor-na-lis-ta. Às vezes, escrevo um texto maior, um pouquinho mais extenso. Ao invés de escrever vinte laudas, escrevo duzentas. Mas escritora, isso eu não sou mesmo, sou incapaz de fazer ficção, sou muito fiel às palavras, ao jeito da pessoa, não crio sobre a verdade. Recentemente eu coordenei um livro de fotografias, “Olhar Peregrino” e escrevi a apresentação de 20 páginas. Então a dúvida: como é que eu vou escrever? Fui por um caminho assim, torto. Achei o título, fui para o dicionário procurar o sentido da palavra peregrino, e são muitos. Resolvi abrir o livro assim: Peregrino é o viajante, que empreende grandes jornadas. Peregrino é o estrangeiro, que causa estranheza por onde passa. Peregrino é o falcão. Peregrino é o raro, o excepcional, o extraordinário. Peregrino é aquele que está nesta vida para passar à eterna. São muitas as acepções da palavra, mas nenhuma reúne tanto quanto esta: peregrino é o olhar de Anna Smith, pois nele estão contidas todas as outras. Aí, a designer do livro me disse: “nossa, mas isso é pura poesia…” Eu respondi: “Não, isso é dicionário”. Eu tenho um caso de amor com os dicionários, amo palavras.

Você deve estar pensando: “essa pessoa não tem vida?”. Tenho sim. Fiz a trajetória igual a outras mulheres da minha geração. Talvez nem tão igual assim. Fui casada, mas não nasci pra isso. Não gosto de amarras, nem de depender de ninguém e muito menos que alguém dependa de mim. Dos meus oito anos de casamento, sobrou uma filha, Isabel, que adoro. E uma família enorme: os dois filhos do casamento anterior do meu marido, Gabriel e Paulo, são meus filhos até hoje. Os filhos deles me chamam de avó, do que eu muito me orgulho e fico completamente comovida. E é bom também porque sou aquela avó que não precisa ir ver toda semana, chega lá com presente, faz uma graça.  Está bom assim?

Eu amo viajar, sou decididamente uma viajante Conheço boa parte do mundo, tenho em casa um mapa com diversos lugares marcados, os que conheço ( tachinha branca) e os que quero ir (tachinha azul), como Nova Zelândia, Escandinávia, Suécia, Bora Bora. Em qualquer viagem, gosto de me perder, não sou bem uma turista. Eu ouso dizer que trabalho somente para viajar. Agora vou enfrentar a minha mais longa viagem. Não serei turista, não serei viajante, serei moradora. Acho que é a realização de uma vida: sou uma felizarda, encontrei a minha profissão, faço o que eu gosto. E vou poder redescobrir Paris e escrever sobre isso. Podia ficar lá só flanando, mas inventei um site, um blog, um e-book. Muita gente me pergunta: “Não dá pra você ir sem trabalhar, só ir?” É obvio que se eu for simplesmente vou curtir, mas se me obrigar a fazer todas essas coisas, então vou viver situações que talvez, de outra forma, não vivenciasse. Vou curtir Paris com olhar de jornalista, esse mesmo olhar que sempre me acompanha, e vai ser ótimo.

Espero que você me siga neste site, do mesmo jeito que leu até o fim essa minha “autobiografia”. Ou será que foi o meu ghost que escreveu? Descubra se puder e quiser.

 

PS: Já descobriu? É difícil. Recentemente dei um curso chamado As Dores e Delícias de ser um Ghost Writer e a proposta final foi que os alunos escrevessem algo sobre mim, depois de uma entrevista. E o resultado foi maravilhoso, como você pode comprovar no texto acima, o que escolhi para ser minha “autobiografia”. Eu mexi um pouco, como acontece em trabalhos de ghost. E quem é o autor? Ora, ele é ghost, e já assumiu essa nova personalidade. Aprendeu a lição: o bom ghost é aquele que escreve e desaparece!